Há anos no ofício despretensioso da escrita. Tarefa árdua, escrevendo como quem tem fome, se abunda de comida.
Por vezes, se engana e se engasga. Num esforço à glote, engole e traga uma palavra mal digerida. Escreve, corrige e apaga.
Volta ao começo, à procura de outras palavras caras ao sentido, que lhe adornem ou complementem as outras, a fim de que não lhe alterem o significado distantemente ambicionado, deveras apto a qualquer tempo ser alterado ou enfim desconstruído.
No princípio, era o Verbo. Isso o que nos diz o velho mito, inscrito há muito no famigerado Livro, por quase todos conhecidos. Não sei se legítimo, embora nos faça algum sentido. Na pré-história, os pictogramas.
Na Mesopotâmia, a escrita cuneiforme dos sumérios já extintos. Hieróglifos no Egito antigo. Os alfabetos fenício, grego e com Roma, o latino, misturado aos territórios pelo Império conquistado.
Dele, o português ibérico, o francês antes gaélico, o romeno, o espanhol, uma parcela do inglês na Britânia violada, até com os Normandos, a chegada, que lhe dera outros caminhos.
Do pergaminho à imprensa, uma revolução impressa e intensa. Um famigerado Guttenberg, aos brados altos em sentença, em nítido alemão, ao cabo da idade média, diria: “Alle Information soll frei sein.
Damit erwecke ich ein neues Untier zum Leben: das Zeitalter der wahren Mitteilung. Informiere dich und entwickle dich, ehe man dir neuen, künstlich erzeugten Unglauben einpflanzt – trügerisch und niederträchtig”.
Em bom português: “Há de ser livre toda informação. Com isso, faço viva nova fera: a era da vera comunicação. Informa-te e te desenvolva, antes que lhe botem à cabeça outra fabricada descrença, manipulada e megera”.
Do escriba antigo, a pena do copista, de quem hoje tenho pena, subtraído do seu ofício por uma caneta à tinta, pela máquina analógica à fita, computadores, tablets e smartphones, escrita multimodal no meio digital, combinando texto, som, imagem multimídia.
Há anos no ofício despretensioso da escrita. Meu primeiro livro, escrito à máquina com fita.
O segundo, à mão descrita, rabiscando aqueles textos à solta língua, dignos de me tornarem um homem são.
Ambos devidamente ao laptop transcritos, antes mesmo de publicados e reproduzidos, eternamente vivos ao leitor que lhe deem tempo à minha extrema unção. Na parede, o calendário justaposto a um velho relógio incansável, tiquetaqueando sem parar.
As horas passam, o ponteiro bate às cinco. Hora de rascunhar. Escrever é exercício. Exige hábito e não dispõe de outros mistérios.
Tal qual o caçador, oficia o escritor, não usa arma, porém, a alma, dia a dia treinada, sem outra pretensão, que não a de um lavrador a semear palavras, sintonizado ao ato, atento aos movimentos, aos fenômenos vindos aos sentidos, circunspecto, mínima e mentalmente disposto e apto, tal qual um ser que se deixa ser levado por um ascensor que lhe pressiona um botão, em direção ao cume dum terraço literário, encaminhando-se à lenta ascensão de um veículo vertical elevador.
A forma não importa e não é meta. Poesia, crônica, conto, novela ou romance, à preferência do asceta. Escrever apenas. Encontrar o genuíno.
Um olhar atento é poderoso à descrição de qualquer momento vivido, ficcionado ou mesmo aquele átimo irresponsável inexpressado e mal digerido.
A leitura importa e é meio. Não digo que leia apenas os livros. Leia-os sim, livremente, em qualquer assunto, tema, estilo, qualquer coisa que lhe venha ao interesse amigo.
Leia as bulas, os anúncios, as imagens, as conversas e os possíveis pensamentos alheios. Escritor é antes um leitor.
Leia os comportamentos, as posturas, os trejeitos, os olhares, os sorrisos e cada um de seus desesperos, dispostos gratuitamente à rubra face morta ou viva e sem receio. Use os demais sentidos.
Observa os dias com as suas surpresas nas coisas mais aparentemente comezinhas. Tateia melhor os objetos. Dispensa a pressa. Tateia melhor as pessoas, abrace, beije, transe educadamente lento e com respeito. Refletir a cada instante, ao escritor, é o que mais nos interessa.
Cheire mais, sinta o odor do vento, das flores, da comida franca fresca à mesa, disposta antes mesmo da sobremesa e a mastigue atentamente, imaginando a intenção do cozinheiro no sabor proposto em cada um de seus temperos. Ouça mais.
Na música, principalmente, deixe-se levar. Dos clássicos aos modernos e contemporâneos. Não se esqueça do bom jazz à chuva de um nublado dia frio, ao morno banho que o refresque e o renove com um copo cheio.
Ao cabo, tudo é obra da informação, matéria-prima do pretenso-escritor em sua missão. De resto, nada mais importa.
Escreva e pronto, o que vier é pro agora indelével antro. Traduzido, vira memória. Somos todos personagens inseridos numa ampla e infindável estória que se expressa e se repete sob as mãos de um desconhecido autor, a quem talvez não conheçamos, porém, entre nós, convenhamos: Tudo o que foi criado, vive, cresce e morre, não antes sem que nos deixe um legado, uma obra só pensada ou escrita, uma inspiração fotografada em um retrato na cozinha, composta por todo o percebido aos mínimos processos dos sentidos, diariamente aprimorados e jamais esquecidos.
Por menor que seja, não se esqueça: viva, mas também escreva.