Ao longo de minha vida, conheci muitas pessoas dignas de se tornarem um personagem qualquer de minhas crônicas, contos ou poesia.
Homens e mulheres das mais distintas classes, profissões e opiniões: atendentes, frentistas, médicos, professores, agentes públicos, lixeiros, mendigos, roqueiros, hippies, amantes, meretrizes, caseiros, jogadores, viciados, escritores, vagabundos, bandidos, engenheiros, biscateiros, playboy, nerds, vendedores, maçons, espiritualistas, ateus, dentistas, advogados, estudantes, marombas e até traficantes.
Sem qualquer juízo de valor, cada qual se me apresentando um imenso universo individual, com vícios, hábitos, virtudes e comportamentos de estilo, todos aptos às infinitas possibilidades de manifestação na complexa ordem existencial.
Neste breve escrito, por oportuno, dentre aqueles todos, destaco um, do qual faço um breve relato.
Freitas, na época, era um garoto aos dezoito ou dezenove anos, com o qual pude compartilhar um pouco de vivência durante o curso de graduação em ciências jurídicas na cidade de Araçatuba, longínquo município do Estado de São Paulo.
Nestas plagas, em meados, salvo engano, do ano de dois mil e quinze em diante. Antes, porém, é importante esclarecer o poder transformador das relações.
Como tábula rasa que somos, a cada encontro proposto ao contexto de nossas decisões de atuação, novas pessoas começam a integrar as nossas vidas, mostrando-nos uma nova faceta de opiniões que em muitos casos nos servem de repulsa ou inspiração, distanciamento ou aproximação.
A questão é que toda relação, profunda ou superficial, sempre traz a lume um motivo de comparação. João Menezes de Freitas.
Conheci-o de vista no percurso de um concurso para ingresso de estagiários no Ministério Público de São Paulo, a partir do qual passamos a trabalhar juntos, sob a tutela de um Promotor de Justiça titular, junto à Promotoria Criminal local respectiva.
Filho de linhagem árabe, ao primeiro dia de trabalho notei em Freitas um aspecto deveras introspectivo, daqueles típicos das pessoas focadas em uma ambição desconhecida.
Embora de pouca idade, pouco conversava e pouco mais ainda franqueava os sinais de sua vida pessoal, com exceção das coisas mais notórias, já conhecidas pelas pessoas que ali laboravam.
Assumidamente católico, Freitas se esquivava das conversas controversas, mormente aquelas relacionadas às questões espirituais, embora, nas poucas oportunidades, viesse a se irritar quando lhe questionavam a opinião acerca de um ou outro excerto bíblico para discussão. Éramos três: Freitas, o Júlio, servidor efetivo, e eu, um mero curioso, sempre ansioso para encontrar uma brecha ao relato onde integrar humor com algumas metáforas nem sempre infantis, conquanto, sem me gabar, muito criativas. Sempre em franca amizade, gostávamos de irritá-lo, cutucando-lhe as feridas nas polêmicas constatações.
A ideia, quando possível, era deixá-lo à rubra face, ardendo de ódio quanto motivado a se interpelar naquilo que lhe era contrário nas questões de fé. Mas isso era raro, pois Freitas era a todo tempo focado, cumprindo fiel e integralmente os atos que lhe eram designados. Manejava o corpo de uma petição acusatória como que só, sem qualquer observação ou corretivo da autoridade à qual estávamos subordinados.
Por minha vez, eram sempre broncas e retificativos. Uma luta intensa entre o escritor e o burocrata. Habituado à escrita criativa, ungida pelas figuras de linguagem, minhas petições sangravam ao regresso, com inúmeros apontamentos em vermelho, o que me causava intenso desgosto, apesar do esforço, por achar-me digno de um bom texto. Mas a coisa não era para brincadeira.
À promoção da justiça não cabem metáforas, metonímias, catacreses, sinestesias, hipérboles, eufemismos, ironia, antíteses, gradações e paradoxos. A bronca vinha a tempo:
— Thiago, sei que lá fora é poeta, mas aqui, com o seja objetivo e, por favor, tenha mais respeito. Àquela altura entornavam os meus vinte e poucos anos, de pouca envergadura, baixa estatura, embora honesto e esforçado, nutrindo sempre muito amor à busca pelo aprimoramento.
Nisso sempre vinha a comparação. O Freitas, bem mais novo, se calava e tudo fazia com primor. Chegava à hora certa e saía à hora previamente marcada, sempre quieto e reservado.
Ao longo do tempo, pude me afeiçoar ao seu espírito de pacífica personalidade, disposta a auxiliar. Freitas passou a frequentar a casa de meus pais, onde empreendíamos interpretar uma ou outra música clássica ao violão. Garoto talentoso, que, embora sem qualquer conhecimento técnico ou teórico, empunhava o instrumento como ninguém, dando corpo à excelente harmonia musical com muito pouco esforço.
Não tive dúvidas, era autodidata. Como bom intérprete das personalidades, pude constatar: a boca silente guarda hermeticamente uma mente que não cessa de pensar. Assim como os artistas e essa gente em geral que naturalmente se aprimora no ato de criar, Freitas era sempre meditativo; jamais aceitava um copo d’água, uma xícara de café ou qualquer quitute oportuno que se lhe oferecesse ou apresentasse. Não era adepto de festas, sociabilidades, tampouco do álcool ou dos hábitos ordinários, lícitos ou ilícitos, nos quais usam o ser humano médio para relaxar.
No porte, demonstrava o vigor da temperança, magro sem ser fraco e forte sem ser robusto. Uma boa amizade, confesso, suficientemente apta a me demonstrar um novo espectro de comportamento, comparado ao meu, sempre ansioso, afobado, desatento e muito pouco preocupado.
Embora mais velho e experimentado, tornei-me notoriamente sabedor de que outras vidas se aprimoram com muito menos esforço, independentemente dos caminhos traçados e das marcações dos dias nos calendários. O tempo veio e o levou a seu destino. Um primoroso cargo público no Estado do Paraná, onde hoje reside, carrega certamente o seu exemplo omisso de um quase-monge para aos outros demonstrar que a caminhada branda e honesta pode levar quem quer que seja ao lugar que se deseja sem pestanejar.
Um brinde ao Freitas, que, ainda distante, ressurge em meus pensamentos como modelo de conduta premente. Das relações, porém, mantenho a consciência sobre a unidade do indivíduo, qualidade do que é único e indivisível, cada qual com seus dilemas, anseios e problemas.
Esforço-me em não me comparar deixando essa oportunidade para quando um dia, colhendo os frutos de minhas ausências e rebeldias, possa dele me lembrar e me arrepender de tudo o que me fiz, das artes que vivi, dos poemas que escrevi sobre as aventuras e os perigos em que me meti, até a respiração cessar, certo de que a vida é sempre infeliz, não importa onde se possa estar, exceto se lute para ser, vivendo intensamente o que se quis, sem que isso implique quando, quanto ou lugar.